15 de julho de 2014

ONDE ESTIVERAM AS MULHERES NA COPA DO MUNDO 2014?

A Copa do Mundo de 2014 é um evento do futebol masculino, mas foi visível a presença constante em número e empolgação das mulheres. Nos estádios, nas ruas, na organização ou na cobertura jornalística foi fácil vê-las. Porém, senti falta de ver Marta, eleita cinco vezes a melhor jogadora do mundo, nessa grande festa do futebol mundial sediada no Brasil.
Ao twittar sobre meu sentimento de pesar com a falta da imagem de Marta, fiquei ainda mais surpresa ao ver que várias pessoas acharam que eu estava falando da ex-prefeita de São Paulo, Marta Suplicy, e não de uma das melhores jogadoras de futebol do mundo. Isso mostra o quanto o futebol feminino é invisível no país do futebol.
Durante 35 anos, havia uma lei no Brasil que proibia as mulheres de praticarem futebol por motivos de: saúde reprodutiva. Essa proibição foi internalizada fortemente em nossa cultura, como cita Carmen Rial:
No Brasil, a proibição da prática do futebol as mulheres foi um corolário das ideologias eugenistas que pregavam a importância da proteção do corpo da mulher, visto como frágil, para que pudesse continuar cumprindo sua função de procriadora, gerando crianças saudáveis e, por conseguinte, melhorando a raça branca no Brasil.
Por trás dessa suposta proteção podemos identificar o mise-en-jeux das fronteiras de um lugar social para mulher, aquele da mãe, que conforma um tipo particular de corpo: roliço, sem músculos, com formas arredondadas e mobilidade limitada. Um modelo ideal que corresponderia aos papéis femininos socialmente prescritos: passivo e submisso.
Esta exclusão do futebol, inicialmente imposta, foi logo internalizada por muitas mulheres. Quando a antropóloga norte-americana Janet Lever esteve no Brasil nos anos 1980 pesquisando futebol estranhou a ausência das mulheres neste esporte e sua total falta de interesse. Tendo ouvido falar de uma legislação que proibia um esporte que no seu país era praticado predominantemente por mulheres, indagou a um funcionário da Confederação Brasileira de Futebol se era verdade que existia tal lei. Sua resposta foi de que não era preciso lei, as mulheres nunca iriam se interessar por futebol, elas conheciam o seu lugar. Referência: A participação das mulheres na mídia brasileira
Marta é uma grande vencedora, mas ainda não venceu essa invisibilidade. Além dela, poderíamos ter tido Formiga, Cristiane, Meg e tantas outras que jogam ou jogaram pela seleção feminina de futebol na publicidade, nas mesas-redondas ou nos programas de debate. Mas não foi o que vimos. Então, durante essa Copa do Mundo fiquei de olho nos espaços ocupados pelas mulheres.
Cobertura televisiva
Nos canais abertos, tanto a Rede Globo como a Rede Bandeirantes já tinham mulheres apresentando programas esportivos. Nos canais a cabo: Sportv, ESPN Brasil, Fox Sports Brasil e Band Sports, saltou aos olhos o grande número de mulheres repórteres que faziam a cobertura da Copa nas diferentes cidades brasileiras e também em outros países. Porém, há duas questões importantes:
1) Dificilmente há mulheres nos programas de debate ou mesas-redondas, em que se discutem questões técnicas do futebol e não apenas as notícias;
A ESPN Brasil, por exemplo, teve grande parte de sua programação voltada para esse tipo de programa e era difícil encontrar uma mulher nos programas mais populares, mesmo nos que traziam convidados. Fui avisada por amigos de que haviam sim repórteres e apresentadoras e elas foram vistas com maior regularidade na reta final do campeonato. Achei bem curioso, porque nos programas com participação dos telespectadores por meio das rede sociais era muito comum ver comentários enviados por mulheres sendo exibidos na tela, o que mostra que elas são uma parte grande da audiência.
Quem se destacou nessa questão foi a Fox Sports Brasil, com seus dois canais a cabo. Durante a programação especial era fácil ver mulheres apresentando os programas e discutindo questões táticas. Inclusive, em uma das edições do programa 'Boa Noite, Copa' a trans* Rogéria foi uma das convidadas do debate, tendo o mesmo espaço de fala que os outros comentaristas que incluíam ex-jogadores e jornalistas esportivos. Karine Alves era presença constante, além de Renata Cordeiro. O canal Fox Sports 2 fez uma cobertura com humoristas durante a transmissão dos principais jogos, mas Marília Ruiz e Ana Paula Oliveira analisavam as partidas tecnicamente.
O destaque na Rede Globo e no Sportv foram a escalação de mulheres para serem as principais âncoras de informações sobre a seleção brasileira, respectivamente as jornalistas Fernanda Gentil e Janaína Xavier.
2) As mulheres seguem padrões estéticos bem mais que os homens;
Em qualquer canal que fazia a cobertura da Copa, na TV aberta ou no cabo, era possível ver homens jovens, velhos, magros, gordos, bonitos, feios, narigudos, carecas, calvos, cabeludos, altos, baixos, com ou sem óculos, com ou sem olheiras, sabendo ou não falar diferentes idiomas, com sotaque ou sem, com cabelos compridos ou curtos, com ou sem barba. A imensa maioria eram brancos, mas não era difícil ver negros e até mesmo alguns com traços indígenas ou asiáticos. Não vi nenhum cadeirante ou alguém que parecia ter alguma deficiência.
No caso das mulheres, com raríssimas exceções, seguiu-se o padrão: jovem, feminina, magra, sem deficiências e branca. Que é o padrão visto na grande maioria dos programas jornalísticos da TV. Os homens podem ser bem diversos, inclusive no quesito idade, enquanto as mulheres seguem regras mais rígidas para aparecerem no vídeo. Entre as negras, além de Karine Alves (Fox Sports Brasil), vi Cynthia Moraes (repórter no Sportv) e Débora Gares (repórter na ESPN Brasil).
Assédio e machismo
A maioria dos torcedores estrangeiros que vieram a Copa do Mundo são homens e já falei um pouco sobre questões envolvendo brasileiras, brasileiros e gringos no texto: “Mulheres e Gringos na Copa do Mundo”. Infelizmente, junto com tantas mulheres torcedoras nos estádios e nas ruas, o assédio, o abuso sexual e o machismo marcaram forte presença nos relatos. Além de não termos espaço na publicidade da Copa e na maioria dos programas especialistas da TV, o trabalho das jornalistas também foi desrespeitado.
Qualquer mulher, estivesse ela pronta para a balada, de vestidinho curto e decote, ou uniformizada como repórter, de tênis, calça jeans e camiseta, virava um alvo. É preciso não só desviar de homens embriagados, que tentam fechar a passagem com o próprio corpo e roubar um beijo à força. Mas também ignorar provocações e xingamentos.
Ao desviar de um deles, ouvi uma bronca: "O que foi? Está com medo de mim?" Estava: primeiro, porque tentou me puxar à força. Segundo, porque gritou comigo, como se eu não tivesse o direito de recusar a abordagem.
Toda mulher tem esse direito. Além do mais, eu estava trabalhando. E a função exige olhos atentos, escaneando a movimentação de torcedores, vendedores ambulantes, estrangeiros, varredores de rua e policiais. E os olhares que, freqüentemente, acabavam se cruzando, para alguns freqüentadores, eram sinal de disponibilidade. Mais de uma vez, agarraram meus braços, puxaram meus cabelos: "Ô repórter!", "Ô fotógrafa". Ao serem ignorados, os homens atiravam: "Sua escrota". Referência: Driblando na Vila Madalena: quando o xaveco é quase uma agressão sexual por Verônica Mambrini.
Protagonismo feminino
Cantoras brasileiras e estrangeiras foram maioria nos shows de abertura e encerramento da Copa. Das quatro seleções que chegaram as semi-finais, três tem mulheres no comando de seus países: Brasil, Argentina e Alemanha. A modelo Gisele Bündchen teve destaque no último jogo ao participar, junto com o jogador espanhol Puyol, de uma ação de marketing da Louis Vitton para apresentar a taça da Copa do Mundo. Estes foram alguns momentos em que a FIFA incluiu oficialmente mulheres no evento.
E claro, os locutores dos jogos, todos homens, faziam sempre questão de exaltar a beleza das torcedoras como um bônus durante os jogos. Não deve ser incomum pensar que as jornalistas recebam esse mesmo tipo de elogio freqüente dos colegas de trabalho. Sabemos que as pessoas sempre gostam de elogios, o problema é quando eles se restringem sempre a apenas um aspecto. Raros foram os momentos em que vimos os locutores exaltando a paixão das torcedoras por suas seleções, suas habilidades vocais em cantar músicas para incentivar o time ou a criatividade de suas fantasias, as próprias câmeras da FIFA pareciam sempre procurar mulheres magras, brancas e jovens.
Comecei esse texto falando da mulher que considero a maior protagonista do futebol brasileiro, Marta. Pesquisando na internet soube que ela foi convidada para ser a estrela de uma campanha do governo desenvolvida pelo Ministério do Turismo, que visa reforçar o slogan "Vamos fazer a Copa das Copas". Segundo as informações no site do Ministérioa campanha será veiculada em redes de televisão, emissoras de rádios, painéis de aeroportos e anúncios impressos. O vídeo promocional terá versões de 30 e 60 segundos e será veiculado em canais de TV aberta e fechada. Não consegui encontrar nada sobre essa campanha, fora a mensagem de áudio com poucos segundos de Marta no site do Ministério e algumas fotos.
No início do ano, Marta cobrou a inclusão do futebol feminino no movimento Bom Senso FC. Em junho, participou da inauguração do Espaço Futebol para Igualdade no Museu da República (RJ) com a exposição 'Mulheres em campo: driblando preconceitos', como madrinha da ONG britânica Streetfootballworld. Fico com a sensação que Marta parece uma estrangeira quando se trata do futebol no Brasil.
Conheço inúmeras mulheres que acompanharam essa Copa do Mundo com muito interesse, assistindo os programas esportivos, revendo os melhores momentos na internet, discutindo nas redes sociais. Ganhar mais espaço e reconhecimento é fundamental, porque estamos aí e não vamos largar a bola.
Em 2015, teremos a 7° Copa do Mundo de Futebol Feminino no Canadá. Espero uma boa cobertura por parte dos veículos de comunicação esportivos e cada vez mais pessoas interessadas em apoiar integralmente o esporte que é a paixão nacional.

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