Texto de Andi Moreira.
Dentro de mim habitam muitos medos, da ignorância, do sofrimento, do desemprego, do preconceito de minha família. Sou uma mulher trans*, não há como esconder minha condição, vivo em um estado de visibilidade compulsória, o armário não me comporta mais. O simples fato de existir me torna “abjeta”, “estranha”, “bizarra” à boa parte da sociedade. Minha presença denuncia que outras sexualidades são possíveis e me torna objeto de estudo, observação e dissecação. Infelizmente, a transgeneridade é um dos aspectos da existência que reduz as pessoa a um rótulo.
Diferentemente de outras mulheres trans*, comecei minha transição tarde, aos 36 anos. Antes, me formei em escola pública, curso técnico e depois graduação em engenharia, me casei, fiz pós-graduação e agora mestrado, construí minha vida antes de iniciar minha transição. Isto me protege de uma série de preconceitos, porém, não me garante acesso ao mercado de trabalho e nem livra a mim, minha esposa e minha filha do julgamento moral das outras pessoas.
Para mim, construir uma expressão de gênero adequada ao bem-estar biopsicossocial e político teve um preço muito alto. Às trans* é imposta a invisibilidade, andar de mãos dadas no shopping, dar um beijo, abraçar, qualquer demonstração de afeto em publico é passível de reprovação. Acabamos reproduzindo um medo que não é nosso, mas que nos é transferido pelas outras pessoas por meio de olhares, gestos e palavras e pela negação diária de nossas identidades. Este é um tipo cruel de exclusão e marginalização que me faz termedo de estar visível, de ser trans* e que, por vezes, me faz sentir raiva das pessoas e de mim mesma.
Vejo a negação das identidades se estendendo às instituições, bancos, consultórios médicos, lojas, escolas, enfim, qualquer lugar onde seja necessário o uso de documentos pessoais para identificação. A simples existência das identidades “legal” e “social” já é causa de constrangimento, nos expondo e humilhando cotidianamente. Nossos instrumentos legais carregam o nome de uma outra pessoa, nos obrigando a dar explicações a todo instante e a dependermos da boa vontade de quem nos atende.
Me alegra ver exemplos como o da delegada Laura ou da travesti Anastácia, que demonstram que certas mudanças estão ocorrendo, isso me traz esperanças. Mas ao mesmo tempo, me preocupa o fato da espetacularização destas conquistas. O estigma que não é removido, antes é usado para alimentar as notícias como algo exótico, bizarro… Pouco importa a competência das pessoas ou sua história pregressa, elas são trans* e ponto. Para entender o que escrevo, basta ler os comentários feitos nos sites onde são publicadas tais notícias. Lá, pode-se tomar contato com toda sorte de pseudo-cientificismos, preconceitos e ódio explícito.
Nossa identidade é oficialmente negada por meio de uma estigmatização e invisibilização médica, falta muito ainda para acabarmos com a psiquiatrização de pessoas trans*, que ainda são diagnosticadas como portadoras de “disforia de gênero”. O direito à singularidade é atropelado pela pressão heteronormativa das instituições e da sociedade, que tentam nos enquadrar em um binário de gênero do qual não fazemos parte. Por isso, a produção de conhecimento acadêmico e científico acerca do tema é tão importante neste momento.
Acredito que todxs nós, trans*, precisamos buscar o reconhecimento de nossa cidadania, a igualdade de direitos e nossa real inserção na sociedade. Porém, como afirma o deputado Jean Wyllys, para que isso se torne realidade, precisamos de leis e políticas públicas. Precisamos ainda de maior coesão entre os movimentos LGBT para cobramos em conjunto e com maior força ações do poder Executivo em prol de nossa visibilidade, da visibilidade das sexualidades abjetas, periféricas e da multiplicidade dos gêneros.
Autora
Andi Moreira é “marita” dedicada, pãe, engenheira, MBA, mestranda em Educação, mulher transgênera, pós-identitária, militante, escritora, cozinheira, faxineira, sou uma pessoa plural como tantas outras, apenas eu.